Multiparentalidade, Desbiologização e Afeto

Multiparentalidade, Desbiologização e Afeto

O Tribunal de Cassação da França proferiu decisão divulgada na mídia recentemente[1], sobre um caso de multiparentalidade materna envolvendo uma questão de transgênero e que conflita com uma tendência mundial de predomínio do afeto sobre quaisquer dogmas e preconceitos.

Em resumo, o casal concebeu a filha pelo método natural no ano de 2014, antes da realização da cirurgia de redesignação sexual. A transição de gênero de uma das mães já havia iniciado em 2011, quando, a que nasceu com o gênero masculino, teve seu registro civil alterado.

A Corte francesa, de forma extremamente retrógrada, entendeu por indeferir o pedido de registro de dupla maternidade e, a despeito do vínculo biológico e afetivo, posicionou-se pela absurda possibilidade de “adoção” pela mãe transgênero.

Enquanto isso, no Brasil, festejamos decisões como a da 2ª Vara de Família de São Carlos/SP, que autorizou o registro de dupla maternidade por casal homoafetivo e que utilizou de fertilização caseira para a concepção[2].   

Esse mesmo entendimento, com predomínio de laços afetivos e do melhor interesse da criança, já foi aplicado pelo Judiciário do Rio Grande do Sul, na Comarca de Caxias, ao enfrentar questão idêntica à francesa – em que além do afeto entre mãe e filho, havia o vínculo biológico – ao permitir que a ex-companheira e a mãe transexual registrassem o filho com a dupla maternidade[3].

Casos como estes não são nenhuma novidade, mas têm recebido destaque na impressa porque estão em consonância com discussões sobre políticas públicas de respeito e inclusão da diversidade cultural baseada em identidade sexual e de gênero.

Sobre o tema da paternidade e maternidade afetivas, houve grande avanço no Brasil com os provimentos do Conselho Nacional de Justiça nº 63 de 2017 e nº 83 de 2019, que possibilitaram a formalização de situações fáticas de evidente e robusta relação afetiva entre pais e filhos, permitindo-se o registro disto mediante procedimento administrativo nos ofícios de registros civis de pessoas naturais.

Portanto, a multiparentalidade, desbiologização e preponderância do afeto são temas recorrentes em nosso cotidiano que, como bem lembrado por Zeno Veloso – renomado jurista, falecido em 18/03/2021 por complicações decorrentes de COVID – em conferência realizada nos idos de 1979 na Faculdade de Direito de Minas Gerais já anunciava que a paternidade

[tal qual a maternidade]

só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico, como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação.

Seja no caso francês, em que a biologia foi afastada para dar vez a uma solução técnico-jurídica via reconhecimento do afeto, ou nos casos brasileiros em que a dupla maternidade de casais homoafetivos foi chancelada, é certo que preconceitos devem ser deixados de lado a fim de prestigiar o bem estar e respeito a todos os indivíduos.


[1] Disponível em: https://noticias.uol.com.br//ultimas-noticias/rfi/2020/09/16/justica-francesa-decide-que-mulher-trans-deve-adotar-a-propria-filha-para-ser-reconhecida-como-mae.htm Acesso: 17/09/2020 às 20:01 horas.

[2] Disponível em: https://www.ibdfam.org.br/noticias/7664/No+m%C3%AAs+da+vicibilidade+l%C%A9sbica%2C+casal+registra+com+dupla+maternidade+filho+concebido+por+insemina%C3%A7%C3%A3o+caseira#.X0fXDPv3T1o.linkedin Acesso em: 17/09/2020 às 22:44 horas.

[3] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/paulo-sampaio/2020/08/28/mulher-trans-e-ex-companheira-registram-no-rs-crianca-com-2-maes-biologicas.htm Acesso em: 18/09/2020 às 10:32 horas.

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