Tem coisas que só acontecem no Brasil mesmo, e o mais recente exemplo disso é a data de promulgação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021): 1º de abril. Sinceramente esperamos se tratar de apenas uma inofensiva coincidência, mas não deixa de ser irônico que em um país que tem um infeliz histórico com a corrupção nas contratações públicas, a lei que visa a garantir princípios como a impessoalidade e a moralidade em licitações tenha sido publicada logo no dia da mentira.
A nova legislação – discutida por anos no Congresso Nacional, com a colaboração de diversos setores da sociedade civil – tinha por objetivo declarado substituir a antiga Lei 8.666/1993 e diversos outros diplomas legais que até então regulamentavam as licitações, pretendendo que o antigo desse lugar ao novo.
Que enorme estranheza causou então o fato de, ao contrário do que muitos esperavam, a nova lei não ter revogado (ao menos não imediatamente) a antiga lei de licitações. Ao invés disso, a Lei 14.133/2021 optou por inaugurar um fenômeno que, embora possível, raramente antes havia sido visto no Brasil: a coexistência, por determinado período, de duas normas regulamentando a mesma coisa. Ficou parecendo até brincadeira de 1º de abril.
No Brasil, por força do disposto no art. 1º do Decreto-lei 4.657/1942 – a famosa LINDB: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro –, uma lei deve entrar em vigor 45 dias depois de sua publicação. É o que os juristas chamam de vacatio legis. Não raro, porém, as leis são aprovadas com um dispositivo determinando que elas entrarão em vigor na data da publicação, o que é bastante comum em normas que visam a regulamentar questões menos complexas.
Normas que pretendem regulamentar (ou, como no caso, substituir a regulamentação vigente) institutos complexos, por sua vez, tendem a conter dispositivos que estendem essa vacatio legis “padrão”, de 45 dias, para períodos maiores. Apenas a título de exemplo, o atual Código de Processo Civil, promulgado em 2015, contou com vacatio legis de um ano e só entrou em vigor em março de 2016.
Toda a comunidade jurídica esperava que a nova lei de licitações seguisse a mesma receita. A vacatio legis de um ano costuma ser bastante positiva, pois se trata de um prazo bastante razoável para que os operadores do direito possam estudar a nova lei, preparando-se para a aplicar quando ela finalmente entrar em vigor, encerrando a vigência da norma antiga.
Não foi o que ocorreu com a Lei 14.133/2021. Ao invés da entrada em vigor imediata – com igualmente imediata revogação da lei anterior – ou dentro de um prazo previamente estabelecido (findo o qual a norma anterior também se encerraria), a nova lei de licitações inaugurou uma situação pouco usual, estabelecendo que:
Art. 193. Revogam-se:
I – os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;
II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.
Art. 194. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Como se vê, o art. 194 dispõe que a Lei 14.133/2021 entra em vigor imediatamente, mas, por força do art. 193, as leis que anteriormente regiam as licitações seguirão em vigor por mais dois anos. Foram revogadas, mas “só de mentirinha”, como convém em um 1º de abril.
Para melhor estabelecer como ficará essa confusão toda decorrente da vigência simultânea de duas leis regulamentando a mesma coisa, a Lei 14.133/2021 conta com a seguinte disposição:
Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção de escolha deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou no instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
Ou seja, será possível, até 31 de março de 2023, que o Administrador escolha qual das normas regerão a licitação ou contratação direta por ele promovida. Só a título de exemplo, sabe-se que a Procuradoria Geral do Estado do Paraná editou a Orientação Administrativa nº 47/PGE, pela qual “orienta os órgãos da Administração Direta, Autárquica e Fundacional a não licitarem com fundamento na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos até que o Decreto regulamentador da Lei nº 14.133, de 2021, seja elaborado e expedido pelo Senhor Governador do Estado”.
Diga-se, apenas de passagem, que a preocupação da PGE/PR é válida: a plena vigência da Lei 14.133/2021 depende, ainda, da edição de vários decretos regulamentadores pelo Poder Executivo de cada um dos entes federados (embora seja possível, caso o gestor local assim queira, “emprestar” o decreto federal, que logo deve ser editado). Até lá, talvez o mais adequado seja mesmo aplicar a lei antiga.
O empresário que trabalha com licitações, por sua vez, deverá ter ambas as leis em mente ao participar de um certame, pois o gestor poderá escolher qualquer uma delas como fundamento do processo.
E engana-se quem pensa que as leis 8.666/1993, 10.520/2002 e 12.462/2011 sumirão daqui a dois anos para nunca mais voltar. Trata-se de mais uma “pegadinha legislativa”: na hipótese de uma licitação conduzida de acordo com as leis antigas ser convocada em 31/03/2023, as normas revogadas regerão esse certame e o contrato dele decorrente até o final de sua vigência. Em se tratando de um contrato de prestação de serviços continuados, que na forma do art. 57, II, da Lei 8.666/1993 pode ser prorrogado por até 60 meses, temos que a antiga norma poderá ter uma “sobrevida” até, pelo menos, meados de 2028!
Em resumo, temos que quem imaginou que promulgação da Lei 14.133/2021 poria imediato fim aos problemas causados pela aplicação da Lei 8.666/1993 (que também trouxe, façamos justiça, diversos benefícios), caiu em uma pegadinha de primeiro de abril. A antiga Lei de Licitações e Contratos Administrativos ainda será aplicada por um bom tempo, superior até mesmo aos 02 anos a que se refere o art. 191 da nova lei, seguindo conosco, com tudo que ela traz de bom e de ruim.
Autoria: Pablo Eduardo Pocay Ananias