É de conhecimento comum a aversão dos brasileiros à formalização de negócios. Por mais complexas ou simples que sejam as transações entre as pessoas, é cultural a insistência em evitar que se coloque “tudo no papel” e muito comum buscar assistência jurídica apenas depois que o negócio está feito e quando já está gerando problemas.
Essa postura de temor aos contratos e pouca cautela, tem como uma das consequências, abarrotar judiciário. Mas não deveria ser assim! Afinal, o contrato nada mais é que uma ferramenta ou um mecanismo funcional e instrumental da sociedade em geral que representa um acordo de vontades entre os envolvidos e no qual deve preponderar a autonomia da vontade[1], ou seja, a mínima intervenção do Estado e a máxima liberdade das partes.
As únicas condições seriam então, o respeito às exigências e formas legalmente aplicáveis para cada caso.
Sob este ponto de vista, surgem questões relevantes quanto à contratação em situações familiares, com vistas principalmente à liberdade nos projetos de vida das pessoas e ao que a lei autoriza ou não.
Embora nossa sociedade ainda seja extremamente conservadora e isto tenha reflexo em algumas decisões judiciais, há avanços consideráveis nos temas das famílias, como por exemplo nos casos recentes de registro civil de mais de um pai ou mais de uma mãe (multiparentalidade); de reconhecimento de vínculo com o pai e/ou a mãe “do coração” ou simplesmente daquele que exerce ou exerceu o papel de pai ou mãe sem necessariamente ter um laço de sangue com o filho (paternidade/maternidade socioafetiva); uniões de pessoas do mesmo gênero; e mais recentemente nos contratos de namoro e para geração de filhos (contrato de parentalidade).
Neste cenário é de se reconhecer que foram ampliadas as formas de família de modo que nenhum tipo ou espécie de família pode se sobrepor a outra[2], e o Estado não pode mais interferir tanto na vida privada das pessoas.
É neste contexto que surgiu a possibilidade dos contratos de namoro, usuais para diferenciar situações de união estável.
A especialista Marília Pedroso Xavier[3], destaca que a pandemia fez, por exemplo, com que casais de namorados passassem a viver na mesma casa, mas sem que isso necessariamente implique em uma relação na qual querem que sejam aplicadas as regras da união estável, sejam elas em relação à partilha de bens ou herança em caso de falecimento de um deles.
Há mais de uma década o juiz e professor Pablo Stolze Gagliano comentava um boom entre os paulistas exatamente na crescente procura de assistência jurídica para formulação de contratos de namoro[4]. Isso se devida ao fato de uma alteração legislativa à época, que passou a excluir a exigência de tempo mínimo para a configuração de união estável.
A partir de então, independente do tempo de convivência, o simples fato de um homem e uma mulher conviverem de forma pública e duradoura, com o objetivo de constituir família, já passaria a ser interpretado como união estável fazendo surgir direitos e obrigações entre eles.
Ocorre que passados tantos anos, a discussão sobre a validade desse contrato permanece, porém essa ferramenta pode ser extremamente útil a depender do que os envolvidos pretendem estabelecer e mais ainda, do que realmente vier a ocorrer entre eles na prática.
Outro estudioso do tema, o professor Dimitre Braga Soares de Carvalho[5], entende que o contrato de namoro pode definir inclusive questões não patrimoniais e extremamente particulares das partes envolvidas, tais como: número de relações sexuais entre o casal, atividades domésticas, administração das contas domésticas, questões religiosas, dentre outras que podem tranquilamente ser objeto do contrato de namoro e/ou do contrato pré-nupcial e sempre com objetivo de reduzir conflitos futuros.
Um tanto quanto mais inovador, seria o contrato de coparentalidade ou “de geração de filhos”, defendido pelo especialista em direito de família Rodrigo da Cunha Pereira ao partir do raciocínio de que “conjugalidade” é totalmente diferente de “parentalidade” [6].
Assim, sendo as partes livres e conscientes de seus direitos e obrigações em relação aos filhos que já têm ou que virão pelo método de concepção que escolherem (via relação sexual ou mediante técnicas de fertilização), torna-se plenamente possível que formalizem esta situação. Afinal, é possível que as pessoas se encontrem com o objetivo de ter filhos e não necessariamente formar um casal.
Foi seguindo essa diretriz que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo homologou no ano de 2019 o primeiro acordo de parentalidade que se tem notícia[7]. Entre as cláusulas estabelecidas pelos pais e que foram confirmadas pelo Judiciário, estavam questões sobre as responsabilidades de cada um deles em relação à filha, além da forma de educação que seria proporcionada a ela, as atividades extracurriculares que seriam propiciadas, os cuidados com a saúde e bem-estar da menor.
Todavia, poderiam ainda estabelecer diretrizes religiosas, culturais e até mesmo qual método adotariam para a formação do rebento (conservador, cristão, montessoriano, de disciplina positiva, hippie, etc.).
Certo é, que todas as questões relacionadas ao direito de família devem priorizar a liberdade, privacidade e respeito mútuo, seguindo a diretriz recomendada pelo Código de Processo Civil de 2015 para que todos os esforços sejam empreendidos para a solução consensual da controvérsia.
Logo, não havendo impedimento legal para o ajuste a que as partes chegaram, a prévia formalização via elaboração de um contrato específico, com a assessoria jurídica adequada, apresenta-se como a melhor maneira de evitar conflitos e alcançar a máxima harmonia.
[1] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, v. 3 contratos. 20. Rio de Janeiro Atlas 2020 1 recurso online. ISBN 9788597024692, p. 7.
[2] Especialistas em Direito de Família como Conrado Paulino da Rosa esclarecem que além da família “matrimonial” que é aquela em que há um “casamento” propriamente dito, atualmente existem diversos tipos de família, dentre eles: as “convivenciais” ou originadas de “união estável”, em que independente de uma formalidade legal, determinadas pessoas se unem e formam um núcleo familiar, em que há afeto, solidariedade e auxílio mútuo; as famílias “poliafetivas”, em que o núcleo familiar é composto de três ou mais pessoas que se envolvem, convivem e se estruturam nesta pluralidade; famílias “multiespécie”, em que animais de estimação passam a ser considerados integrantes das famílias; e as famílias “mosaico” ou recompostas/reconstituídas em que foram antecedidas de divórcio, separação ou viuvez, existindo filhos de casamentos anteriores, posteriores e filhos em comum. (Curso de Direito de Família Contemporâneo, 5.ed.rev., ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2019).
[3] Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020. 127 p. (Coleção Fórum de direito civil e seus desafios contemporâneos, 3). ISBN 978-65-5518-029-9.
[4] Contrato de Namoro. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8319/contrato-de-namoro Acesso: 23/07/2020.
[5] Liberdade de contratar no direito de família – namoro, convivência e casamento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eaMV-jZx-Z4 Acesso em: 29/07/2020
[6] Dicionário de direito de família e sucessões. Saraiva, 2015.
[7] Notícia veiculada pelo IDBFAM em 11/09/2019 e disponibilizada em: https://ibdfam.org.br/noticias/7046/Homologado+primeiro+acordo+de+parental%20idade+em+S%C3%A3o+Paulo
Artigo de autoria da advogada Leila Erdmann Sônego.