Criptoarte e seus possíveis impactos ao direito autoral

Criptoarte e seus possíveis impactos ao direito autoral

O mercado das artes, assim como todos os outros mercados no mundo, passou, na última década, por um processo de revolução digital. As criações por meios virtuais se tornaram mais comuns e mais rentáveis, conquistando a preferência do público, justamente por sua qualidade de facilitação de compra, consumo e comunicação, em um nível que a arte por meio físico jamais alcançou.

Por outro lado, essa mesma facilidade de comunicação via internet gerou novas problemáticas ao mundo artístico. A possibilidade de cópia, reprodução e transmissão quase imediata de arquivos impulsionou a pirataria e criou uma cultura de descrédito aos artistas, que têm seu conteúdo constantemente republicado e reutilizado em redes sociais sem sua autorização ou ao menos reconhecimento de autoria. O acesso a arte, positivamente, se ampliou, porém, como consequência negativa, o trabalho artístico perdeu valor, inclusive monetário.

Em meio a esse cenário, surge a criptoarte ou NFT art, que pretende restaurar o valor das criações virtuais, possivelmente igualando-as às grandes obras físicas.

NFTs, sigla para Non Fungible Tokens – Tokens Não Fungíveis em tradução livre – são arquivos com códigos únicos, não reproduzíveis, registrados em blockchain, e, por serem infungíveis, que não podem ser substituídos por outro arquivo de mesma espécie. Assim, quando uma criação é registrada como NFT ela se torna uma peça exclusiva, diferente de um simples arquivo de imagem ou som que pode copiado e colado na íntegra.

O mercado da criptoarte, que começou a crescer no segundo semestre de 2020, se tornou um ambiente para colecionadores de arte e transações milionárias. Segundo o site The Verge, a cantora norte-americana Grimes faturou cerca de US$6 milhões, em fevereiro deste ano, leiloando suas peças de arte digital na plataforma Nifty Gateway. O artista visual Beeple, também americano, colocou em leilão sua obra Everydays – The First 5000 Days, uma colagem de 5 mil imagens que criou ao longo de treze anos, no site da galeria Christie’s, sendo a peça arrematada por exatamente US$69,346,250, no dia 11 de março.

No mundo da música, a banda Kings of Leon inovou com seu álbum When You See Yourself (2021), lançado em formato NFT. A obra também foi disponibilizada em plataformas como iTunes e Spotify, mas versões criptografadas exclusivas foram vendidas por US$50 cada, além de outros produtos especiais oferecidos pela banda, todos em NFT, como vinis, ingressos para shows e peças audiovisuais, ofertados por valores entre US$95 e US$2.500, segundo a revista Rolling Stones.

Negócios como esses, de relevante valor monetário, inevitavelmente geram impactos jurídicos, vez que ocorrem por meio de contratos, ainda que a contratação, o objeto contratado e a moeda de troca sejam totalmente digitais.

O caso das criptoartes, no entanto, cria questões de direito que vão além das negociações milionárias, especialmente no âmbito dos direitos autorais.

Inicialmente, uma vez que os arquivos NFTs são únicos, assim como seria uma obra física, existe a esperança de uma mudança de cultura, retomando-se a valorização das obras artísticas, mesmo que em formato digital. A prova de originalidade, consequentemente, se torna mais simples, bastando a verificação do código, que não pode ser copiado. Tudo isso asseguraria maior proteção ao direito moral do autor, impedindo, em tese, seu descrédito via republicação e reutilização de material sem indicação de autoria.

Outro ponto positivo, seria a garantia do direito de sequência. Esse direito, presente no artigo 38 da Lei 9.610 de 1998, determina que “o autor tem o direito (…) de perceber, no mínimo, cinco por cento sobre o aumento do preço eventualmente verificável em cada revenda de obra de arte ou manuscrito, sendo originais, que houver alienado”. Ou seja, é a garantia de lucro sobre a revenda.

Segundo Letícia Provedel, advogada especialista em direitos autorais, a tecnologia de smart contracts usados em blockchain, possibilitaria que o valor da sequência seja automaticamente repassado ao artista no momento da transição.

Em contrapartida, negativamente, a criptoarte pode mover o foco do direito autoral da proteção da expressão criativa para a proteção da propriedade.

É fato que o trabalho artístico não pode ser resumido a um registro em arquivo. Trata-se da criatividade e da técnica do autor, fatores que devem ser prioritários à legislação autoral, caso contrário se torna um mero direito de propriedade comum.

Nesse sentido, o direito autoral de tradição francesa – droit d’auteur – adotado pela legislação brasileira, que atribui à pessoa do criador um direito moral, não transmissível a outrem, se diferencia do copyright estadunidense, que é essencialmente mercantil, e, portanto, passível de venda.

O sistema legislativo norte americano, especificamente o DMCA – Digital Millenium Copyright Act – nessa linha, vem sendo criticado, uma vez que permite que grandes empresas, detentoras de copyright sobre filmes, músicas etc., indisponibilizem conteúdo de criadores em redes sociais, mesmo que tais conteúdos não causem efetivo descrédito ou prejuízo financeiro aos artistas da obra original, mas simplesmente usem de parte dela. A justificativa da derrubada do material é apenas a detenção de propriedade sobre a obra, sem nenhuma análise profunda do seu uso.

Interessante mencionar que, no dia 22 de março deste ano, o presidente executivo do Twitter, Jack Dorsey, vendeu seu primeiro tweet, de 2006, em formato NFT, pelo valor US$ 2.9 milhões. A publicação não continha nenhum conteúdo particularmente criativo, apenas a frase: “just setting up my twttr” ou “estou criando minha conta Twttr”, em português. Esse exemplo deixa claro que a valorização do NFT não necessariamente está na arte, mas sim na exclusividade da propriedade adquirida.

Além disso, é puramente racional deduzir que qualquer outra pessoa sem a mesma fama e autoridade de Dorsey, não conseguiria vender uma publicação tão simples pelo mesmo preço. Assim como dificilmente artistas menores chegarão a arrecadar montante semelhante ao que celebridades como Grimes e a banda Kings of Leon arrecadaram. Novamente, existe apenas a valorização de um produto exclusivo e cobiçado, e não necessariamente da capacidade criativa e técnica de quem o criou. As vantagens dos NFTs não são as mesmas quando se considera artistas de menor alcance, que provavelmente demorarão a vir usar esse tipo de arquivo, que apenas lhes traria novos gastos sem grandes propensões de lucro.

Conclui-se, então, que o mero registro de artes no formato NFT não significa a plena e justa valorização das artes no meio virtual. Trata-se de um novo mercado, ainda não regulamentado por lei, que pode trazer impactos relevantes, positiva ou negativamente, à carreira de diversos autores. Destaca-se assim, que o legislador deve considerar cuidadosamente as peculiaridades do meio artístico a fim de criar uma legislação justa e efetivamente protetiva aos criadores.

Autoria: Letícia Avelar Machado, advogada especializada em Direito Digital.

Fontes
https://www.jota.info/autor/leticia-provedel

https://www.rollingstone.com/pro/news/kings-of-leon-when-you-see-yourself-album-nft-crypto-1135192/

https://onlineonly.christies.com/s/beeple-first-5000-days/beeple-b-1981-1/112924

https://www.theverge.com/2021/3/1/22308075/grimes-nft-6-million-sales-nifty-gateway-warnymph

https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/03/22/primeiro-post-do-twitter-e-vendido-por-us-2-9-milhoes-como-nft.ghtml

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