Crise da COVID-19: Afinal, o que quer o Estado?

Crise da COVID-19: Afinal, o que quer o Estado?

Opinião por Pablo Eduardo Pocay Ananias

Fique em casa, diz o prefeito. Suspendam as atividades, brada o governador na mídia. O Brasil não pode parar, alega o presidente. Temos que achatar a curva. O pico é em abril. Não, é em maio. Máscara caseira não adianta, diz a Organização Mundial da Saúde. Adianta sim, é obrigatório usá-la, recomendam os Estados alguns meses depois. Fique em casa, mas vá à igreja, pois é atividade essencial. Não, um juiz do Rio de Janeiro diz que não é essencial não. A desembargadora diz que voltou a ser. Fique em casa. Não fique em casa. Fique sim.

Paralelamente à crise causada pela Covid-19, um outro vírus infecta os brasileiros: o da incerteza. No país, diversas autoridades de entes federados distintos têm dado orientações confusas, quando não completamente antagônicas. Não se sabe mais a quem ouvir, nem o que diz a lei. Dentre as primeiras vítimas do implacável vírus, está a segurança jurídica que imaginávamos ter.

O Estado do Paraná não foge a essa regra, tendo, nos âmbitos municipal e estadual, exemplos interessantes que comentaremos aqui.

Antes, contudo, é importante dissipar a ideia, errada, de que as normas de um ente federado teriam preponderância sobre as de outro.

Essa hierarquia entre leis, a depender de quem as editou, não existe no Direito brasileiro. A Constituição da República determina que uma norma do Município vale tanto quanto uma da União, que, em hipótese alguma, poderá modificá-la ou revogá-la.

O que os arts. 21 a 33 da Constituição determinam é que cada um desses entes federados – Municípios, Estados, Territórios, Distrito Federal e União – pode editar leis sobre determinadas matérias.

Algumas normas competem exclusivamente à União, como é o caso do Direito Penal. Câmara Municipal nenhuma pode tipificar um fato, tornando-o crime. Outras questões, relativas ao direito local – como a criação de uma zona de estacionamento rotativo – são de competência do Município.

Há, ainda, matérias que podem ser objeto de normas editadas por todos os entes da federação. É o caso da saúde pública, que é competência comum, nos termos do art. 23 da Constituição da República. O art. 200, II, da Constituição, ainda, diz que “executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica” é competência do Sistema Único de Saúde, que é operado de forma comum por todos os entes federados.

Desse modo, quando a União e os Estados começaram a editar medidas antagônicas, um partido político questionou o STF sobre a validade de uma medida provisória editada pelo Presidente da República que concentrava em si a competência para definir o que era atividade essencial e o que não era.

A decisão, recente, foi de que os Estados e Municípios têm direito de fixar a norma que entenderem mais adequada considerada a realidade específica naquele local, e que essa norma prevalecerá sobre a regra de caráter geral, editada pela União.

Feito esse esclarecimento, devemos, então, analisar o que dizem as normas do Estado do Paraná e do Município de Curitiba. E está é tarefa difícil: só no âmbito do estadual, já são mais de 13 decretos e, recentemente, uma lei sobre as medidas que a população deve adotar no combate ao vírus[1]. Isso sem contar os diversos decretos versando sobre matéria administrativa, como a criação de comitês, abertura de créditos, protocolos de funcionamento do funcionalismo, e afins.

O Decreto 4.230 determinou a suspensão de eventos abertos ao público que reunissem mais de 50 pessoas. Essa proibição ainda vigora.

Por sua vez, o Decreto 4.301, determinou, no âmbito do setor privado, a suspensão das atividades de shoppings centers, galerias e estabelecimentos congêneres, além de academias e centros de ginástica.

Muitos empresários do ramo ainda acreditam que a determinação do Decreto 4.301 vigora. Ocorre que, no dia seguinte a sua edição, foi publicado o Decreto 4.311, que diz:

Art. 1º. Altera o art. 19 do Decreto nº 4.230, de 16 de março de 2020, que passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 19. A adoção das medidas prevista neste Decreto deverá ser considerada no âmbito dos outros Poderes, Órgãos ou Entidades autônomas, inclusive na iniciativa privada, em regime de colaboração no enfrentamento da emergência de saúde pública, em decorrência da Infecção Humana pelo COVID-19, bem como poderão ser reavaliadas a qualquer tempo de acordo com a evolução da pandêmia.

§ 1º Além das medidas previstas neste Decreto, deverá ser considerada a suspensão das seguintes atividades:

I – shopping centers, galerias e centros comerciais;

II – academias, centros de ginásticas e esportes em geral.

(…)

Portanto, pelas normas estaduais, os estabelecimentos não estão obrigados a fechar. Há uma recomendação, não uma ordem. Destaque-se que, no primeiro decreto (4.301/20), a norma dizia que “fica determinada, no âmbito do setor privado, a suspensão das seguintes atividades”.

Porém, com a edição do segundo decreto (4.311/20), a suspensão das atividades passou de uma determinação para uma recomendação, no sentido de que a suspensão dessas atividades, dado o cenário atual, deve ser devidamente considerada, avaliada pelo empresário. Como a análise da evolução histórica da norma é método de interpretação válido, é possível dizer, com adequado grau de certeza, que a recomendação do decreto não tem caráter coercitivo.

Isso significa que academias e shoppings podem abrir? Resposta curta: sim. Fiscal nenhum poderá, com base no decreto estadual, afirmar que elas devem permanecer fechadas.

Contudo, algumas variáveis devem ser levadas em conta. Afinal, o decreto estadual recomenda a suspensão, e, embora não haja uma obrigação de suspender a atividade, não se pode fingir que a recomendação não existe.

Com efeito, não seguir a recomendação não ensejará, por si só,  multas ou cassação do alvará. Por outro lado, se funcionários forem infectados no ambiente de trabalho, a inobservância da recomendação pode ser alegada como causa para indenização em uma reclamação trabalhista.

Aliás, reclamações trabalhistas – apesar de serem o pesadelo de qualquer empresário – são só a faceta mais amena das diversas possibilidades de represália legal à abertura descuidada do comércio. O Ministério Público, estadual e federal, tem se demonstrado propenso ao ajuizamento de ações civis públicas, que podem resultar em condenações de multas milionárias.

Desse modo, o empresário deve estar ciente de que há apenas uma recomendação de suspensão, o que impede a aplicação de punições de natureza administrativa pelo Poder Executivo. Isso não o isenta, contudo, da necessidade de respeitar tal recomendação sempre que possível e, quando for necessário abrir, tomar todas as medidas necessárias para evitar o contágio.

É justamente acerca dessas medidas que as normas do Município de Curitiba e uma recente lei estadual se aprofundam. O poder público municipal, inicialmente, suspendeu as casas noturnas e ambientes similares e recomendou o fechamento de outras atividades.

Ou seja, tal qual no decreto estadual, só esteve proibido um tipo de atividade. Recomendava-se a suspensão das demais. Felizmente, a população foi além e, em geral, respeitou a necessidade de isolamento independentemente de uma determinação coativa do poder público.

No dia 16 de abril, a Secretária Municipal de Saúde editou a Resolução 01/2020, que, regulamentando o decreto municipal, obrigou o uso de máscara pela população em geral (art. 2º), determinou o controle de lotação dos espaços públicos (art. 3º), determinou que os elevadores em prédios comerciais deverão ser utilizados individualmente, exceto por pessoas da mesma família (art. 5º). Também, os restaurantes não poderão servir no modelo buffet, também conhecido por self service.

Estranhamente, o art. 9º da Resolução municipal diz que as medidas não se aplicam aos shoppings centers por força do decreto estadual. Isso faria sentido se a determinação estadual fosse mais abrangente do que a municipal, mas é o contrário: o Estado só não recomenda o uso, sem proibi-lo, enquanto o Município autoriza-o mas determina o cumprimento de certas medidas.

O mais relevante, na Resolução 01/2020/SMS/PMC, é a seguinte previsão:

Art. 10 – O descumprimento das medidas complementares acarretará a responsabilização administrativa, civil e penal dos agentes infratores, nos termos da Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e o da Saúde, em conformidade com o artigo 11, do Decreto Municipal nº 470, de 2020, sujeitando o infrator à cassação dos documentos de licenciamento para funcionamento, em conformidade com o Código de Posturas, a Lei Municipal nº 11.095, de 8 de julho de 2004.

Ou seja, ao contrário das normas dos decretos estaduais, tímidas em prever medidas mais rígidas, o Município de Curitiba efetivamente prevê a possibilidade de cassação do alvará e até mesmo responsabilização criminal pelo delito previsto no art. 268 do Código Penal, que pode resultar em pena de detenção de três meses a um ano, além de multa.

Além disso, o Governador do Estado do Paraná recentemente sancionou a Lei 20.189/2020, que obriga o uso de máscara por todas as pessoas que estiverem fora de sua residência, enquanto perdurar a pandemia do Coronavírus, sob pena de multa. Além disso, os comércios ficam obrigados a disponibilizar máscaras de proteção para seus funcionários e colaboradores, além de locais para a higienização das mãos com solução de álcool em gel a 70%, e a exigir que as pessoas que estiverem no ambiente, inclusive clientes, utilizem máscaras.

As multas são previstas em UPF/PR (Unidade Padrão Fiscal do Estado do Paraná) e variam de R$ 106,60 a R$ 533,00 para pessoas físicas, e R$ 2.132,00 a R$ 10.660 para pessoas jurídicas, podendo o valor da multa ser dobrado – isto é, chegar até R$ 21.320,00 – em caso de reincidência.

Em resposta à pergunta feita no título desse artigo, eis o que o quer o Estado: o comércio pode continuar funcionando, mas é imprescindível que se sigam, na região do Município de Curitiba, as medidas expostas na Resolução 01/2020 da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, sob pena de cassação do alvará de funcionamento dos empreendimentos, ou até sanções criminais, e que, em todo o Estado, sejam seguidas as determinações da Lei Estadual 20.189/2020, sob pena de multas de até R$ 21.320,00.


[1] Decretos 4.230, de 16/03/2020; 4258, de 17/03/2020; 4.301, de 19/03/2020; 4.310 e 4.311, ambos de 20/03; 4.317, de 21/03; 4.318, de 22/03; 4.319 e 4.320, ambos de 23/03; 4.323, de 24/03; 4.388, de 30/03; 4.421, de 03/04; e, finalmente, 4.435, de 07 de abril.

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