DEPÓSITOS JUDICIAIS: O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACABARÁ COM A “FARRA” DOS DEVEDORES, AUMENTANDO SEUS RISCOS CASO OPTEM POR DISCUTIR SEUS DÉBITOS?

DEPÓSITOS JUDICIAIS: O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACABARÁ COM A “FARRA” DOS DEVEDORES, AUMENTANDO SEUS RISCOS CASO OPTEM POR DISCUTIR SEUS DÉBITOS?

Às vezes, por mais que bem-intencionadas, algumas decisões dos tribunais acabam dando margens para alguns absurdos jurídicos.

É esse o caso de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, que visava a regular a responsabilidade pelo pagamento dos encargos moratórios (sobretudo juros de mora e atualização monetária) em caso de depósito judicial do valor devido, mas que acabou criando uma situação na qual o credor termina por receber um valor muito menor do que aquele ao qual ele fazia jus.

Felizmente, parece, a situação está prestes a mudar, de modo a garantir uma distribuição muito mais equitativa entre credores e devedores dos ônus decorrentes do tempo de tramitação processual. É o que explicamos no artigo abaixo, cuja leitura recomendamos para todos aqueles que tenham ações de execução ou cumprimento de sentenças ajuizados, com depósitos dos valores já realizados para garantia do juízo, ainda pendentes de recebimento.

De acordo com os arts. 1º, IV, e 170 da Constituição da República, a ordem econômica brasileira tem por princípio a livre iniciativa, de modo a se caracterizar uma “economia de mercado”.

Mas o que exatamente isso significa?

Muita coisa, dentre as quais se destaca a possibilidade de as pessoas se obrigarem mutuamente através de negócios jurídicos que “fazem lei entre as partes”, possibilidade essa que encontra respaldo tanto em nosso Código Civil quanto na recentíssima Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019.

Os negócios, por sua vez, são feitos para serem cumpridos, como já indica uma frase em latim muitas vezes repetida acriticamente nos cursos de direito: pacta sunt servanda. E o que acontece com quem não os cumpre? De acordo com o art. 389 do Código Civil, o devedor responderá “pelas perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundos índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.

Embora muitas vezes não pareça, a liberdade econômica é um valor de tal modo consolidado no Brasil, que é até mesmo lícito às partes estabeleceram qual índice de correção monetária (IGP-M, IPCA, etc.) será aplicado ao seu contrato.

Para forçar o cumprimento do contrato inadimplido, por sua vez, o credor deve buscar o Poder Judiciário. Ao ajuizar uma execução de título extrajudicial, o credor informa ao juiz o valor que entende ser devido pela parte contrária, e se passa a praticar, no processo, uma série de atos – como bloqueio de contas bancárias, penhora de ativos, entre outros – que objetivam transferir patrimônio do devedor ao credor, quitando, assim, a dívida.

Em regra, até que a execução termine, o valor da dívida é constantemente atualizado pelo índice de correção monetária previsto em contrato (ou, na falta dele, por outro índice estabelecido pelo Poder Judiciário) e é acrescido de juros moratórios de 1% ao mês, e, em alguns casos, dos juros remuneratórios previstos em contrato.

Por sua vez, o devedor pode discordar do valor da dívida informado pelo credor ao juiz, dos critérios aplicados para sua atualização, ou até mesmo da existência desse débito. Caso isso ocorra, ele poderá se defender mediante o ajuizamento de um processo incidental chamado “embargos à execução”.

Via de regra, o ajuizamento de embargos a uma execução não impede o prosseguimento dela. Em outras palavras, enquanto o juiz analisa os argumentos do devedor, o credor pode continuar buscando bens penhoráveis ou outras maneiras de satisfazer sua dívida.

Há, porém, uma exceção a essa hipótese. Nos termos do art. 919, § 1º, do Código de Processo Civil, se o juiz entender que os argumentos do devedor são pertinentes e se já houver penhora em valor suficiente para garantir o pagamento da dívida – ou, ainda, se o devedor apresentar alguma garantia de pagamento – o juiz poderá conceder “efeito suspensivo” aos embargos, isso é, suspender o prosseguimento da execução até que os argumentos do devedor sejam analisados.

Caso o juiz conceda efeito suspensivo aos embargos, nenhuma quantia é repassada ao credor até que haja um pronunciamento final do Poder Judiciário sobre eles.

Nessa hipótese, valores que foram penhorados e já estavam depositados em uma conta bancária vinculada ao processo não são liberados para o credor a título de pagamento. Enquanto eles permanecerem nela, a instituição financeira remunerará esse depósito de acordo com a taxa básica de juros praticada no país, que hoje gravita em torno de 4,25% ao ano.

E é aí que está a raiz do problema descrito no início deste artigo: o entendimento hoje vigente no Superior Tribunal de Justiça é o de que a partir do momento em que o valor é penhorado ou de modo geral depositado em juízo, cessa a responsabilidade do devedor sobre os encargos da dívida. Isso porque o depósito já estaria sendo remunerado pela instituição financeira responsável pela conta bancária vinculada ao processo, de modo que o devedor não é mais responsável pelo pagamento de juros e da correção monetária.

Isso dá margem, porém, a um grande problema. Como dito anteriormente, as instituições financeiras remuneram o valor depositado nas contas judiciais por índices que hoje são ínfimos (nem sempre foi assim), não raro inferiores ao índice de correção estabelecido em contrato. Além disso, como penhora e depósito do valor não representam o pagamento da obrigação, porque o credor não tem a disponibilidade econômico-financeira de seu crédito, o devedor continua em mora, de modo que deveria responder por juros dessa natureza no percentual de 1% ao mês.

Ou seja, ainda que a defesa do devedor seja rejeitada pelo juiz, quando o credor finalmente receber os valores, receberá muito menos do que receberia se o débito continuasse sendo atualizado segundo os critérios que as partes livremente estabeleceram em contrato, e receberá sem a incidência dos juros de mora.

É aí que mora o problema: hoje, devedores podem, após conseguir o efeito suspensivo em seus embargos, interpor diversos recursos, não raro infundados, que acabam por apenas protelar o julgamento de mérito. O “X” da questão é que, da forma como as coisas estão hoje, não há risco nenhum para o devedor caso ele faça isso: como ele não terá de pagar pelos encargos moratórios decorrentes da de- mora do julgamento, há até certo “incentivo” à interposição de recursos. O risco da operação é todo do credor.

Com efeito, da forma como as coisas estão hoje, a demora no julgamento prejudica somente o credor, que receberá o dinheiro mais tarde em valores defasados, não só porque a taxa SELIC ficou abaixo da inflação, mas porque não incidiriam os juros de mora de 1% ao mês até a data do pagamento. Para o devedor, porém, não há ônus algum: nos termos do entendimento atualmente vigente no STJ, ele não responde pelos encargos da mora após a efetivação de depósito judicial.

Esse entendimento prejudicial aos credores foi, aliás, consolidado em julgamento de recurso especial sob a sistemática dos recursos repetitivos. O termo é bastante técnico, mas, na prática, o que ele significa é que todos os juízes e tribunais do país estão obrigados a segui-lo, na forma do art. 927, III, do Código de Processo Civil.

Em outras palavras: a jurisprudência hoje predominante no Superior Tribunal de Justiça disciplinou a questão dos depósitos judiciais de modo que, qualquer que seja a situação, o credor sairá prejudicado (mesmo que a defesa oposta pelo devedor seja rejeitada!).

Felizmente, o STJ vem demonstrando uma tendência a reverter esse cenário. Há julgados isolados desta Corte que afastaram a aplicação do entendimento acima descrito – batizado Tema 677 –, mantendo a obrigação do devedor de responder pelos juros e atualização monetária (chamados, nesses julgados, de “consectários da mora”) até que ocorra o efetivo pagamento ao devedor, independentemente da existência de depósito judicial.

É o que ocorreu, a título de exemplo, no Recurso Especial nº 1.475.859/RJ, relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha, no qual se decidiu que “o valor depositado judicialmente libera o devedor nos limites da quantia depositada, mas não o libera dos consectários próprios de sua obrigação”.

Essa decisão foi dada em 2016, mas, em razão da dinâmica própria dos recursos repetitivos, só é aplicável ao próprio caso em que foi proferida. A decisão do Min. João Otávio de Noronha não revogou o Tema 677/STJ, que continuou sendo de aplicação obrigatória pelos de- mais tribunais do país.

Só recentemente é que o órgão de cúpula do STJ, sua Corte Especial, decidiu rediscutir a aplicação desse tema. Sem dúvida, o fizeram por perceber a forma como o entendimento vinha sendo abusado.

Com efeito, a revisão do Tema 677 está atualmente na pauta do Superior Tribunal de Justiça, sendo que já há um voto favorável, da Ministra Nancy Andrighi, para alterar seu conteúdo.

Para a Ministra, a remuneração pela instituição financeira – que segue a taxa básica de juros – e o pagamento de encargos moratórios pelo devedor devem coexistir: o devedor deve ser responsável pela diferença entre o valor liberado pela instituição financeira ao final do processo e o valor que efetivamente seria pago se calculado de acordo com os encargos estabelecidos em contrato.

No momento, o julgamento se encontra interrompido por pedido de vistas dos autos feito pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, de modo que o entendimento antigo – favorável aos devedores – ainda é aplicado pelos tribunais estaduais. A qualquer momento, porém, ele pode ser continuado.

A expectativa é a de que o STJ reveja essa tese, adotando o entendimento dos Ministros João Otávio de Noronha e Nancy Andrighi, que nos parece muito mais acertado do que o atualmente vigente. Se assim o for, teremos dado um grande passo no sentido de criar um processo civil mais efetivo, que garanta a efetiva satisfação dos créditos sob execução.

Autoria: Pablo Eduardo Pocay Ananias

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