Por Raphaella de Souza do Vale
OAB/PR 97.145
Trataremos brevemente de algumas das consequências da pandemia do novo Coronavírus nas relações contratuais e do impacto do Projeto de Lei nº 1.179 de 2020 (RJET), que dispõe sobre “o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)”.
O projeto de lei traz disposições temporárias e tópicas, que não alteram a legislação vigente, mas orientam a sua aplicação para este momento, em uma tentativa de equilibrar as relações jurídicas privadas, mitigando os danos consequentes da atual situação, trazendo estabilidade para as relações privadas e evitando oportunismos.
No âmbito dos contratos, a pandemia tem diversos efeitos marcantes, tratando-se de fato imprevisível que pode alterar profundamente as condições dos contratantes.
O Código Civil Brasileiro trata do caso fortuito e da força maior no artigo 393, prevendo que o devedor não responde pelos prejuízos deles resultantes, a menos que tenha se responsabilizado explicitamente por eles. Isto é, se no contrato não estiver estipulado o contrário, o devedor, ou seja, a parte que tem uma obrigação a cumprir, seja ela de pagar, fazer ou deixar de fazer o acordado, não é responsável pelos prejuízos causados ao credor pelo descumprimento da sua obrigação, se este tiver resultado de caso fortuito ou força maior.
Segundo o parágrafo único do mesmo artigo, “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. A pandemia do novo coronavírus certamente se enquadra nessa definição. Assim, a parte devedora que ficar impedida de cumprir a sua obrigação devido às consequências do Covid-19 e das medidas tomadas para contê-lo fica isenta de responsabilidade pelos prejuízos causados.
No entanto, o devedor em mora, que deixou de cumprir inteiramente a sua obrigação no tempo devido, não é beneficiado pela isenção de responsabilidade, durante o período que estiver em atraso, mesmo que esteja impossibilitado de cumprir a sua obrigação devido ao caso fortuito ou de força maior, a menos que prove não ter culpa, ou que o dano ainda ocorreria se tivesse cumprido a obrigação no momento oportuno, conforme o artigo 399 do Código Civil. O Projeto de Lei nº 1179 propõe, em seu artigo 6º, que as consequências da pandemia na execução dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não tenham efeitos retroativos.
Sendo assim, embora possam afetar contratos firmados antes da pandemia, cuja execução está em curso ou se dará no futuro, se aprovado o projeto de lei sem alterações, não interferirão com as prestações vencidas antes do dia 20/03/2020, data que o PL designa como o início dos eventos derivados da pandemia (art. 1º, parágrafo único). Além da isenção de responsabilidade do devedor pelos prejuízos causados pelo descumprimento, as consequências da pandemia podem resultar na revisão ou até extinção de contratos.
O art. 478 do Código Civil prevê que “se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato”. Tal efeito se aplica aos contratos de execução continuada ou diferida, ou seja, aqueles que preveem prestações contínuas ou repetidas (por exemplo, mensais) ou uma prestação a ser adimplida em um momento futuro, estando excluídos os contratos de cumprimento imediato.
O art. 479, no entanto, permite que o réu evite a resolução do contrato, oferecendo-se para modificar as suas condições equitativamente, de forma a reequilibrar a relação contratual. De acordo com o art. 7º do Projeto de Lei 1179, não se considerariam fatos imprevisíveis, exclusivamente para os fins dos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.
O dispositivo concretiza em lei um entendimento que já é reconhecido pela cultura jurídica e jurisprudência nacional, uma vez que o país tem um histórico de crises e inflação desmedida, pretendendo-se evitar a judicialização excessiva e os comportamentos oportunistas. Nada impede, no entanto, a renegociação pelas partes de forma voluntária, inclusive com a consulta a advogados. No direito contratual prioriza-se o adimplemento das obrigações, sendo preferível a renegociação amistosa do contrato entre as partes à sua revisão judicial, ou mesmo à sua extinção.
Por fim, ressalta-se que essas disposições fazem um recorte quanto ao direito civil e empresarial, nos quais assume-se que os contratantes estão em condições paritárias. O Código de Defesa do Consumidor não exige a imprevisibilidade como condição para a revisão contratual, enquanto a Lei de Locações toma por base para a revisão a diferença entre o valor do aluguel e o valor de mercado.
Links e Artigos referência
Projeto de Lei N° 1179, de 2020 (https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/3/7C4875282CE0CD_PL.pdf )
Código Civil Brasileiro (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm )
Live do Professor Doutor Rodrigo Xavier Leonardo, integrante da co-missão que elaborou o projeto de lei 1179, no Instagram da Escola Superior de Advocacia do Paraná. (https://www.instagram.com/esa_oabpr/channel/ )