Postergação do Pagamento de Tributos e a COVID-19

Postergação do Pagamento de Tributos e a COVID-19

Por Pablo Eduardo Pocay Ananias
OAB/PR nº 97.989

Nos últimos quinze dias, os países do ocidente político – assim compreendidos aqueles de tradição liberal, tanto em matéria política como econômica – experimentaram medidas com as quais não estavam acostumados: de restrições às liberdades públicas, como a locomoção, à determinação para que as empresas fiquem temporariamente fechadas. Com efeito, o Estado impôs ao cidadão e ao empreendedor medidas que certamente implicarão na redução da sua capacidade de gerar e gerir recursos econômicos. Por outro lado, não houve redução da pesada carga tributária que é cobrada pelo mesmo Estado que determinou a suspensão das atividades econômicas.

É bem verdade que o Estado precisa de recursos para combater a epidemia. Tal necessidade, contudo, não é, nem de longe, exclusividade sua: diversas empresas cujo faturamento foi severamente reduzido pela pandemia preveem uma crise de liquidez nunca antes vista, e como a corrente geralmente quebra no elo mais fraco, estão em risco os empregos de milhões de brasileiros. Uma solução – a curto prazo e que, portanto, não dispensa a elaboração de um plano de contenção mais profundo – é a postergação dos tributos a serem recolhidos, de modo a injetar (ou melhor, evitar que saia) dinheiro no caixa das empresas e dar-lhes um fôlego para atravessar essa crise.

O governo federal, após muito titubear, deu sinais de que entende isso, e publicou a Portaria 139/2020 do Ministério da Economia, que prorroga o recolhimento das contribuições previdenciárias patronais e do PIS/PASEP. Contudo, diversos outros tributos – federais, estaduais e municipais – continuam a ser cobrados. Para contornar a situação, diversas empresas têm ajuizado ações ordinárias ou impetrado mandados de segurança pedindo, em caráter liminar, a prorrogação da data de vencimento de tributos. Recente reportagem apurou que considerável parte delas tem obtido sucesso.

A primeira decisão a conceder uma liminar desse tipo de que se tem notícia foi prolatada pelo juiz federal Rolando Valcir Spanholo, da 21ª Vara Federal de Brasília/DF. A decisão argumenta que, embora a concessão de uma moratória deva, na forma dos arts. 152 e 153 do Código Tributário Nacional, ser feita mediante lei, a excepcionalidade da crise atual autorizaria o Poder Judiciário a determiná-lo sem infringir o princípio da separação dos poderes.

Como fundamento jurídico, invoca a Teoria do Fato do Príncipe, segundo a qual quando ato da própria Administração Pública – no caso, a determinação da quarentena – provocar o desequilíbrio de um contrato administrativo, esse deve ser reajustado para adequar as obrigações de cada parte à nova realidade fática. Por considerar que a obrigação de recolher tributos não se distancia de um “contrato” celebrado entre o particular e o Estado, ainda que imposto por lei, o juízo aplicou tal teoria para determinar uma prorrogação no prazo de pagamento dos impostos. Diversas outras decisões seguiram essa primeira em diversos estados da federação. Outro juiz federal de Brasília, Márcio de França Moreira, titular da 8ª Vara Federal, concedeu a tutela beneficiando mais de 750 empresas. Outras decisões condicionaram a postergação a manutenção dos empregos, a ser mensalmente demonstrada ao juízo.

Não são poucas as críticas a tais decisões. Fernanda Camano, doutora em direito tributário pela PUC-SP, diz, em artigo ao portal jurídico JOTA, que elas não encontram respaldo na lei, e são funda-mentadas somente na opinião pessoal dos julgadores: há notícias de que o Poder Judiciário tem deferido algumas liminares em ações judiciais propostas pelos contribuintes, concedendo-lhes a postergação do prazo para o pagamento dos tributos, além daquelas autorizativas da suspensão dos atos de constrição patrimonial no âmbito de executivos fiscais, sem fundamento na lei, mas com apoio em situação conjuntural.

Não se admite que o direito seja aplicado segundo situações conjunturais aos sabores do particularismo do julgador. Direito contingente, variável ao sabor das situações, não promove a calculabilidade e a previsibilidade e, com isso, a segurança para a manutenção da sociedade capitalista. Ao assim agir, atesta-se que o subsistema tributário seja flexível, permeável e fluido. O império da lei cedendo espaço para o império da contingência. Substituiu-se o direito estatal pelo “uso alternativo do direito”.

Com a devida vênia ao posicionamento acima exposto, cuja crítica parte de bases sólidas, com ela não se pode concordar. Embora a premissa – de que decisões sem base na lei e sim no sentir particular de cada julgador promovam insegurança jurídica e sejam de todo in-desejáveis – esteja correta, discorda-se da conclusão, pois, ao contrário do afirmado, há, sim, norma que autoriza postergar o recolhimento de tributos. E sequer é necessário ir tão longe quanto o juiz Spanholo, invocando um princípio de Direito Administrativo – ou Direito Público geral – e aplicando-o ao Direito Tributário, o que causa sérias dúvidas sobre a precisão técnica da decisão. Há norma positivada que é aplicável à situação, tratando-se da Portaria 12/2012 do Ministério da Economia, que até a presente data não foi revogada:

Art. 1º As datas de vencimento de tributos federais administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, devidos pelos sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública, ficam prorrogadas para o último dia útil do 3º (terceiro) mês subsequente.

O âmbito de aplicação dessa portaria são os locais no qual haja decreto estadual declarando estado de calamidade pública. Até 21 de março, já havia decreto em tal sentido em, pelo menos, metade dos estados da federação, incluindo São Paulo, motriz econômica do país.

Ou seja, existe fundamento legal idôneo para se reque-rer a postergação do recolhimento de tributos federais durante a pandemia do Coronavírus. É bem verdade que o governo federal publicou nova portaria que disciplina diferentemente a matéria, concedendo um prazo de prorrogação menor do que o previsto na Portaria 12/2012 e condições diversas para sua aplicação.

De acordo com a Portaria 139/2020, contribuições previdenciárias, além do PIS/PASEP, vencíveis em março e abril deverão ser pagas em julho e setembro. O IRPJ, CSLL e IPI não sofreram modificações. Tal portaria, contudo, não revogou a anterior, de modo que as normas coexistem.

Embora a tese ainda não tenha sido apreciada pelo Poder Judiciário, é nossa opinião que, em razão do Decreto Legislativo 06/2020, que reconheceu o estado de calamidade pública em toda a federação, ainda que exclusivamente para fins relativos à meta fiscal do governo, a Portaria 12/2012 se aplica no país inteiro, abrangendo os tributos que não foram expressamente mencionados na Portaria 139/2020.

Quando não, tem-se que, pelo critério da especialidade, a Porta-ria 12/2012 deve prevalecer sobre a Portaria 139/2020 nos estados que decretaram calamidade pública, enquanto a segunda seria aplicável nos demais entes federados. Cabe ao Judiciário apontar qual dessas teses está correta.

Desse modo, aparenta-se possível, diante do atual quadro emergencial, pleitear, administrativa e judicialmente, a prorrogação dos prazos de recolhimento dos tributos federais por até três meses no país todo, ou ao menos nos estados que decretaram calamidade pública— a depender da forma como o Judiciário vai se posicionar em relação à coexistência das Portarias 12/2012 e 139/2020 –, e isso sem ofender o direito positivo, pois a possibilidade está prevista em portaria da Receita Federal.

Ressalta-se que o não recolhimento de tributos só poderá ocorrer após a obtenção de tutela jurisdicional, caso contrário, o empresá-rio corre o risco de enfrentar as consequências do inadimplemento tributário: multa e juros. O ajuizamento de tais ações só deixará de ser eficaz quando o Governo Federal revogar a Portaria 12/2012, o que ainda não ocorreu. Ainda assim, parece-nos que nos casos em que a empresa realmente não esteja gerando qualquer riqueza, será possível combater a cobrança do tributo, independentemente de qualquer portaria ou outro tipo de norma infraconstitucional e infralegal, com fulcro no art. 150, IV, da Constituição Federal, que assim dispõe:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;
Isso porque é possível afirmar que em locais que a atividade econômica está impedida, continuar a cobrar tributos é pura e simples apropriação, pelo Estado, do patrimônio privado, o que é vedado pela Constituição Federal.

Em conclusão, é possível requerer, administrativa ou judicial-mente, a suspensão da cobrança de tributos federais com fulcro na Portaria 12/2012 – o que poderá ser feito em todos os estados da federação ou especificamente naqueles que houverem declarado cala-midade pública, a depender da interpretação que o Judiciário dará essa norma –, o que a Portaria 139/2020 não impede. Quanto aos tributos estaduais e municipais, cada empresa deve analisar a legislação e as portarias tributárias de seu estado, ou, ainda, ajuizar ação suscitando o Princípio do Não-Confisco para evitar a cobrança de tributos enquanto for vedada a atividade econômica.

Verificar: https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/juizes-sp-concedem-decisoes-postergando-tributos-federais

Diponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/juiz-df-prorroga-pagamento-tributos-federais-750-empresas

Em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/limites-da-aplicacao-da-lei-diante-da-nova-realidade-em-materia-de-tributos-06042020

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