A era digital chegou, e chegou de maneira avassaladora: nos últimos 10 anos, quase tudo mudou. Pouco a pouco, demos adeus às longas filas de banco, pois veio o internet banking e, com ele, a possibilidade de pagar contas online, cobrar e transferir dinheiro pelo celular. Também nos despedimos de diversos entraves burocráticos do dia a dia que deixarão pouca ou nenhuma saudade: quase todas as nossas relações com Poder Público – desde o registro de um boletim de ocorrência até processos judiciais – podem ser feitas pela internet.
Até mesmo amizades e relacionamentos de longa data foram “transferidos” para o mundo digital, alocados nas famosas “redes sociais”. Mas algumas coisas resistem mais às mudanças do que outras, e, uma das que mais têm resistido certamente é o mercado médico, especialmente os planos de saúde.
Embora hoje exista tecnologia mais que suficiente para que algumas consultas médicas (sobretudo aquelas que não precisam de contato físico entre o médico e o paciente, como a psiquiatria) possam ser realizadas por videoconferência, até há pouco tempo se insistia na realização de consultas exclusivamente presenciais.
Isso só mudou recentemente: para combater a pandemia e evitar o contágio das pessoas pelo coronavírus, foram editadas algumas leis e regulamentos que passaram a permitir a telemedicina, pelo menos enquanto durar o cenário de calamidade pública. E, embora essa modalidade de atendimento seja direito de todos, o que se tem visto é que muitos planos de saúde de recusam a cobrir consultas por telemedicina. Neste breve artigo, cuja leitura recomendamos a todos aqueles que enfrentaram situação similar, demonstramos como essa é uma conduta ilegal da operadora do plano, que pode ser combatida judicialmente.
Desde 16/04/2020 está em vigor a Lei nº 13.989 que regulamenta o uso da telemedicina no território nacional. A situação pandêmica originada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), principalmente a recomendação para prática de isolamento social pela população que se intensificou no Brasil a partir de março de 2020, foi crucial para acelerar a implantação desta forma de atendimento médico.
De modo bem sucinto, o intuito foi permitir o exercício da medicina mediante utilização de ferramentas tecnológicas tanto pelas operadoras de plano de saúde quanto pelo próprio SUS.
Historicamente, desde 1977 a Organização Mundial da Saúde – OMS adota a seguinte definição: telemedicina é a oferta de serviços ligados aos cuidados com a saúde, nos casos em que a distância ou o tempo é um fator crítico. Tais serviços são providos por profissionais da área de saúde, usando tecnologias de informação e de comunicação (TIC) para o intercâmbio de informações.”
A propósito, na Resolução nº 1.643 de 7 de agosto de 2002, o Conselho Federal de Medicina já disciplinava a prestação dos serviços de telemedicina, que consistia em utilização de metodologias interativas de comunicação áudio-visual e de dados, desde que obedecidas as normas técnicas do CFM, dentre elas a confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional.
Assim, embora essa maneira de prestação de serviços de saúde de modo remoto não seja nenhuma novidade para os profissionais e estudiosos da área, a circunstância atual, em que a tecnologia se aprimorou e se popularizou, estando ao alcance da maioria[1], agregada à evidente desnecessidade e até mesmo risco de contágio proveniente do deslocamento das pessoas, revelou-se o cenário perfeito para plena implantação da telemedicina.
Em nota técnica da Agência Nacional de Saúde que antecedeu em poucos dias a publicação da lei antes referida[2], foi mencionada recente decisão do CFM que reconheceu a possibilidade e eticidade da utilização da telemedicina, nas seguintes modalidades:
- teleorientação: para que profissionais de medicina realizem à distância a orientação e o encaminhamento de pacientes;
- telemonitoramento: ato realizado sob orientação e supervisão médica para monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença;
- teleinterconsulta: exclusivamente para troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico.
Ou seja, o funcionamento dos serviços de telemedicina, a partir de então, deveria seguir tais diretrizes e foi o que se verificou no SUS e também em grande parte das operadoras dos planos de saúde.
No Sistema Único, por exemplo, destaca-se relato de contato realizado via chamada de vídeo pelo aplicativo whatsApp por médico especialista em psiquiatria, logo após o usuário ter procurado uma unidade de saúde na região de Curitiba relatando um quadro depressivo.
De outra parte, uma das maiores operadoras de plano de saúde nacional ainda resiste à realização de atendimento complementar (acompanhamento) de quadro clínico por telemedicina, sem qualquer justificativa plausível, fazendo com que beneficiários precisem judicializar a questão para garantir o direito a esta forma de atendimento médico.
Seja qual for a demanda, a especialidade médica ou a rede de saúde com a qual o indivíduo precise ser atendido, é certo que a opção pela telemedicina deve ser considerada e, caso negada pelo(s) prestador(es), deverão ser buscados os meios legais para garantir este direito.
Destaque-se que a ANS – Agência Nacional de Saúde (o órgão governamental responsável pela regulamentação e fiscalização dos planos de saúde) editou, além da Nota Técnica 3/2020/DIRAD-DIDED/DIDED, que se mencionou acima, outras notas técnicas, que dizem, de forma expressa, que os planos de saúde estão obrigados a cobrir consultas por telemedicina.
É o caso da Nota Técnica nº 07/2020/GDRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO, que diz que “considerando que os atendimentos realizados por meio de comunicação à distância não se caracterizam como novos procedimentos, mas apenas como uma modalidade de atendimento não presencial, esta área técnica entende que não se faz necessário nem adequado atualizar o Rol de Procedimentos (…) devendo-se considerar que os atendimentos por telessaúde já são de cobertura obrigatória (…)”.
Com efeito, a ideia de que há cobertura obrigatória de atendimentos que são “modalidades” – também chamadas de “mero desdobramento” – de outras espécies de atendimento já cobertos pelo plano (como é o caso da telemedicina, que é uma modalidade do atendimento presencial) já é antiga e encontra respaldo na jurisprudência brasileira.
Isso vem sendo evocado sobretudo por pessoas que necessitam de atendimento em home care (mero desdobramento do atendimento hospitalar) e tem o pedido negado pelo plano de saúde, pelo que costumam propor, então, medida judicial buscando a cobertura obrigatória desse tratamento. A ideia tem sido bem recebida pelos tribunais, sobretudo pelo Superior Tribunal de Justiça, e o mesmo raciocínio pode ser aplicado para a telemedicina.
Em resumo, pode se concluir que a telemedicina tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde, e, caso as operadoras neguem esse direito, os interessados tem devem buscar o Poder Judiciário e preferencialmente assistidos por assessorias jurídicas que já tenham enfrentado situações semelhantes.
Autoria de: Pablo Eduardo Pocay Ananias e Leila Erdmann Sônego.
[1] A população brasileira está cada vez mais conectada. É isso que mostra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o levantamento, 82,7% dos domicílios nacionais possuem acesso à internet, um aumento de 3,6 pontos percentuais em relação a 2018.
Disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet
Acesso: 21/07/2021 às 15:16 horas.
[2] Nota técnica nº 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES – Processo nº: 33910.007506/2020-98, Agência Nacional de Saúde Suplementar.