Tramontina, que resistiu a crises e guerras, traz o nome da família em tudo o que produz

Tramontina, que resistiu a crises e guerras, traz o nome da família em tudo o que produz

pandemia do novo coronavírus tem sido um martírio para o empresário Clovis Tramontina, 65, presidente do conselho de administração da empresa que leva o sobrenome da família e que foi fundada por seu avô, Valentin Tramontina, em 1911.

Recluso em sua casa em Xangri-Lá, no litoral gaúcho, o executivo só tem ido à sede da companhia, no município de Carlos Barbosa (RS), para participar da reunião do conselho, na primeira semana de cada mês.

É um sofrimento para alguém como ele, que gosta de conversar com pessoas e abraçá-las. “Não me deixam sair de casa para nada”, lamenta.

Se a crise da Covid-19 está impondo enorme sacrifício pessoal ao empresário, no plano dos negócios ele não tem do que se queixar.

Com sua extensa linha de utilidades domésticas, como panelas, talheres e eletroportáteis, assim como ferramentas, materiais elétricos e apetrechos para jardinagem, a Tramontina se beneficia do tempo que as pessoas estão passando dentro de casa.

Em 2020, faturou R$ 8,3 bilhões, um crescimento de 39% em relação a 2019.

Para este ano, a meta é crescer entre 10% e 20%. “Meu sonho é chegar aos R$ 10 bilhões”, diz o empresário, que comanda a Tramontina há quase três décadas.

O coronavírus ajudou a cimentar uma decisão na empresa. “A pandemia mostrou que tudo tem limite. Eu tenho um problema de saúde e chegou o momento de me aposentar”, diz Clovis, que foi diagnosticado com esclerose múltipla em 1986.

Seu sucessor ainda não está definido, mas será indicado pela holding da família Scomazzon, sócia da Tramontina. Cada família vai ocupar a presidência por três anos, em rodízio, a partir do ano que vem.

“Será o início de um novo ciclo. Tanto os meus filhos como os dos meus sócios estão preparados”, afirma Clovis, que tem três filhos: Marcos (atual diretor administrativo), Ricardo (diretor executivo) e Elisa (sem cargo na empresa).

A Tramontina caminha para evitar uma espécie de maldição que atinge o mundo corporativo: segundo levantamento feito pela empresa de consultoria e auditoria PwC Brasil, apenas 4% das empresas familiares sobrevivem até a quarta geração.

“É a regra das três gerações: pai rico, filho nobre, neto pobre”, afirma Carlos Mendonça, sócio da PwC Brasil e líder dos serviços para empresas familiares.

Entre as causas da baixa sobrevivência estão a falta de um plano de sucessão, conflitos familiares e reinvestimentos insuficientes —uma consequência do aumento dos envolvidos no negócio com o passar das gerações. “Enquanto o negócio cresce numa proporção aritmética, a família aumenta de forma geométrica”, diz Mendonça.

O economista Peter Drucker, pai da administração moderna, dizia que o período áureo da maioria das companhias que alcançam o sucesso é de 30 anos. Pouquíssimas empresas conseguem manter o grau de sucesso por mais tempo do que isso.

Para Mendonça, um dos segredos das empresas longevas é mudar de negócio várias vezes ao longo de sua trajetória, e é fundamental saber o momento certo de sair de um negócio e entrar em outro. “O mundo muda e as empresas têm que saber adaptar seu produto aos novos tempos.”

A Tramontina fugiu do script do pai que acumula fortuna, do filho que esbanja quase tudo e do neto que fica à míngua. A riqueza na empresa gaúcha só chegou depois de muitos anos —e o fundador da empresa nem pôde desfrutar dela.

Filho de imigrante italianos, o artesão Valentin Tramontina se instalou em Carlos Barbosa no ano de 1911. Em um terreno alugado, abriu uma pequena ferraria, onde fazia reparos para as indústrias da região e ferrava cavalos.

Em 1925, começou a produzir canivetes com cabo de osso que ele mesmo confeccionava, à mão.

Com a morte de Valentin, em 1939, coube à sua mulher, Elisa de Cecco Tramontina, tocar o negócio. No intervalo de dois anos, ela perdeu o marido e dois filhos. Ainda assim, conseguiu fazer a Tramontina atravessar os duros tempos da Segunda Guerra. “Esse foi o momento mais crítico em toda a história da empresa”, diz Clovis.

Seu pai, Ivo Tramontina, assumiu a administração em 1949 ao lado do amigo Ruy Scomazzon, que se tornou sócio da empresa. Os dois iniciaram o período de forte expansão da Tramontina. Até então, os canivetes ainda representavam 90% do faturamento.

O início do processo de laminação do aço e o investimento em novas tecnologias abriram novas frentes. A linha de produtos foi ganhando novos itens, como talheres, panelas e outros utensílios de cozinha.

Em 1969, a empresa começou a se aventurar no mercado externo e abriu escritórios em vários países. Formado em Administração de Empresas e em Direito, Clovis passou por várias áreas da Tramontina antes de assumir a presidência, em 1992. “Fiz trabalho de office boy, de recepcionista e de telefonista”, lembra. Ele deu continuidade à gestão do pai, ampliando a linha de produtos e as exportações.

Hoje a Tramontina é uma marca presente em produtos tão variados como utensílios para cozinha, móveis, materiais elétricos, ferramentas industriais, eletrodomésticos, equipamentos para cozinha profissional, artigos para horticultura e até mesmo veículos utilitários —pequenos carros elétricos usados em condomínios e campos de golfe.

Ao todo, fabrica mais de 18 mil itens. “Em média, lançamos um ou dois produtos a cada dia somente em nossa unidade”, diz Marcos Grespan, diretor comercial da área de cutelaria.

Nem sempre a aposta dá certo. Clovis se recorda que, em 1985, a Tramontina comprou uma pequena fábrica de materiais de pesca de Porto Alegre. “Nós tínhamos a melhor carretilha e o melhor molinete do mercado brasileiro”, conta. No início dos anos 1990, porém, o presidente Fernando Collor abriu o mercado para produtos chineses.

A Tramontina fechou a fábrica de materiais de pesca porque não dava mais para concorrer em volume e preço. “Tivemos outros negócios que não deram muito certo, mas faz parte do jogo. Quem não erra, não acerta nunca”, afirma Clovis.

Uma nova aposta é o mercado de peças de porcelana. Até julho, a Tramontina deve inaugurar uma fábrica em Moreno, região metropolitana de Recife, para produção de aparelhos de jantar, tigelas e outros itens.

A unidade exigiu investimentos de R$ 130 milhões e ocupa 52 mil metros quadrados em terreno cedido pelo governo pernambucano. “Será uma fábrica com alta tecnologia e o objetivo é atender ao mercado mundial”, diz Clovis.

A Tramontina é hoje uma das empresas brasileiras mais globalizadas. O mercado externo representa 30% da receita e seus produtos são distribuídos em mais de 120 países.

Um dos destaques recentes é a Alemanha, onde a Tramontina tem mais de 500 pontos de venda de sua linha de produtos para churrasco. Para entrar no país, berço da cutelaria mundial, a empresa usou a estratégia de promover a cultura do churrasco brasileiro, organizando degustações de picanha no espeto.

“Hoje o espeto é um dos nossos produtos mais vendidos na Alemanha”, diz Grespan.

Com o aumento da produção, a Tramontina foi abrindo novas fábricas. Hoje são dez unidades industriais: oito no Rio Grande do Sul, uma em Belém e outra em Recife, cada qual especializada em algumas linhas de produtos.

A empresa investiu no comércio eletrônico e abriu lojas físicas próprias —espaços de experiência que servem como showroom de toda a linha de produtos e que ajudam a reforçar a marca. Atualmente são 22 lojas, chamadas T Stores (10 delas no exterior), além de duas lojas de fábrica.

Segundo Clovis, as três coisas mais importantes para a Tramontina ter conseguido chegar a 110 anos foram a persistência para não desviar o foco diante das adversidades, a aposta desde o início em uma marca única e a valorização das pessoas.

“Para mim, o mais importante de tudo são as pessoas. São elas que sempre fizeram a diferença na Tramontina”, diz Clovis. A empresa tem hoje 9 mil funcionários —20% têm mais de 20 anos de casa e 1.300 foram admitidos desde o início da pandemia.

Clovis afirma que nenhum funcionário está ameaçado de perder emprego pelo avanço da automação: a Tramontina tem hoje 711 robôs em sua linha de produção. “Nunca demitimos nenhum funcionário por causa de uma crise.”

Fonte: Folha de São Paulo
Link: https://bit.ly/3bT0sf4

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