Um Motivo para Ter Saudades da Lei 8.666/93 e Outro para Já Comemorar a Nova Lei de Licitações

O que eu mais vou sentir falta em relação à antiga lei de licitações é o seu número: Lei 8.666/1993. Simples e fácil de decorar, ou mesmo de falar rapidamente. Difere, nisso, da maioria dos outros diplomas legais brasileiros, como, por exemplo, a Lei 12.016/2009, que versa sobre o mandado de segurança. Ninguém chama ela de Lei 12.016. Chamamos de “Lei do Mandado de Segurança”, ou, para os mais íntimos, “Lei do MS”. Afinal, Lei 12.016 é um número complicado, que trava na língua. “Lei do MS” é mais poético, mais sonoro, ainda que um pouco caricato.

O mesmo vale para leis como as que disciplinam a gestão fiscal ou a locação de imóveis urbanos, por exemplo. Ninguém as chama de Lei Complementar 101/2.000 ou Lei 8.245/1991. Chamamos de Lei de Responsabilidade Fiscal; Lei de Locações (ou “do Inquilinato”) e por aí vai.

 Mas a Lei 8.666/1993 segue uma regra diferente do resto da legislação: ela até tem um nome – Lei de Licitações e Contratos Administrativos – mas ninguém o usa.  É muito mais fácil chamá-la pelo número. Oito, meia, meia, meia. Há quem acresça o mil novecentos e noventa e três. Ou, como alguns colegas diziam na faculdade, “oito mais o número da besta”.

Creio que o legislador não estivesse pensando na besta quando a editou. Provavelmente, o Congresso tinha a melhor das intenções. Mas como todos que trabalham com licitações sabem, em muitos aspectos, a Lei 8.666/1993 acabou mesmo por ser coisa profana. Ou, pelo menos, a partir dela se legitimaram algumas interpretações que, se não profanas, são, no mínimo, pouco ortodoxas. Uma licitação não deveria ser nenhum bicho de sete cabeças, mas, muitas vezes, mais por culpa do texto da Lei 8.666/1993 do que em razão de seu número, esse procedimento, em tese simples, acaba sendo, sim, coisa da besta.

Todo mundo conhece alguma empresa que foi eliminada de uma licitação por descumprir qualquer formalidade besta – o trocadilho não é intencional –, que, não raro, foi colocada lá com a pior das intenções: direcionar a licitação, garantindo a habilitação de determinada empresa e de nenhuma outra.

A formalidade em questão pode ser o reconhecimento de uma firma que absolutamente não era imprescindível. Ou a assinatura de todos os sócios da empresa contratada em algum documento misterioso. Ou, ainda, a eleição de determinado modo de envio da documentação (e-mail, correio, entrega em pessoa, etc.) não se aceitando nenhum outro. Em alguns casos mais descarados, ela pode até ser o estabelecimento de requisitos de habilitação inalcançáveis.

Qualquer que seja o caso, é certo que a inabilitação com base nele encontrava respaldo na Lei 8.666/1993, pois ela diz, em seu art. 41, que “a Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada”.

Alguns juristas e magistrados até admitem uma aplicação menos rígidas de tais regras, consagrando a corrente doutrinária que ficou conhecida como “formalismo moderado”, mas, não raro, a jurisprudência desautorizou esse pensamento mais moderno, e o fez com fundamento na Lei 8.666/1993.

Por isso mesmo não foi em mal hora que chegou a notícia de sua potencial revogação. Já faz algum tempo que o Congresso Nacional discutia a elaboração de um novo diploma, para substituir a antiga Lei 8.666 e modernizar seus institutos, mas pouca expectativa havia de sua aprovação.

Assim, foi com uma grata surpresa que estudiosos do assunto e juristas que trabalham com licitações receberam a notícia de que o Senado havia finalmente aprovado o Projeto de Lei 4.253/2020, que institui uma nova Lei de Licitações. Agora, falta somente a sanção do Presidente da República, o que muitos consideram garantida.

A nova norma traz diversas novidades para o procedimento licitatório. Muito mais do que seria oportuno discutir em um breve artigo de opinião, de modo que selecionamos para abordagem apenas aquelas que entendemos mais relevantes.

A primeira delas põe um muito aguardado fim ao problema relatado acima. Sobre a inabilitação de empresas por vícios meramente formais – o que já era, em larga escala, rejeitado pelo Judiciário, mas ainda permanecia um problema –, a nova lei passou a dispor:

Art. 58. Serão desclassificadas as propostas que:

I – contiverem vícios insanáveis;

(…)

V – apresentem desconformidade com quaisquer outras exigências do edital, desde que insanáveis.

Art. 63. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou apresentação de documentos, salvo para atualização daqueles destinados à comprovação de fatos já preexistentes à data de divulgação do edital que possam ser apresentados no prazo para diligências ou na fase recursal, conforme o caso, ou para atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.

§ 1º No julgamento da habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.

Veja que, enquanto a lei antiga nem sempre premiava a empresa que tinha melhores condições de executar o serviço público, mas sim aquela que tivesse uma equipe mais atenta na hora de organizar a documentação, a nova lei passou a permitir – e porque não exigir – que pequenos vícios formais sejam desconsiderados em prol do bem jurídico que é efetivamente buscado no procedimento: a contratação da proposta mais vantajosa.

A partir da entrada em vigor da nova lei, o pregoeiro só poderá desclassificar uma empresa quando demonstrar que o vício documental por ele encontrado não era sanável. Ou seja, a norma passa a prezar por uma busca da verdade real, não a caça por pequenos e irrelevantes defeitos documentais que, muitas vezes, era utilizada por administradores mal-intencionados que buscavam garantir a contratação dos amigos do rei.

Muda-se a chave de pensamento: antes, a lei legitimava que se buscassem motivos para inabilitar a licitante. Agora, é necessário, sempre que possível, buscar motivos para habilitá-la.

Essa mudança está mais nítida na redação do art. 63 do que em qualquer outro lugar. Enquanto o § 3º do art. 43 da Lei 8.666/1993[1] absolutamente vedava a juntada posterior de documentos da fase de habilitação – o que, repete-se, por vezes já era admitido pela jurisprudência mais adequada à doutrina contemporânea –, o art. 63 do projeto de lei recentemente aprovado admite a juntada de documentos, desde que destinados a atualizar ou esclarecer fato pré-existente à data de divulgação do edital.

A mudança, diga-se, nada mais fez do que dar uma urgente e já tardia atualização à norma escrita, para que ela se adequasse a entendimento que o Superior Tribunal de Justiça já adotava há anos, pelo menos desde o julgamento do Recurso Especial 997259/RS, em 17/08/2010.

Como dito, o comando para as autoridades administrativas deixa de ser “busquem motivos para inabilitar a empresa”, e sim “promovam as diligências necessárias para habilitá-la”. A mudança pode parecer pouca, mas é significativa, sobretudo diante da necessidade de fazer a norma abstrata corresponder a realidade pragmática de um país onde muitos agiam de má-fé e muniam-se do comando para fazer prosperar sua escolha pessoal de contratada sobre o resultado da fase competitiva do certame.

E não é só isso: a lei também traz novidades consistentes na criação de uma nova modalidade de disputa – o “diálogo competitivo” – destinado à contratação de obras e serviços complexos; simplifica e unifica os procedimentos do pregão e da concorrência, consolida, em uma única legislação, normas que antes estavam espalhadas em três diplomas legais distintos (Lei 8.666/1993, Lei 10.520/200 e Lei 12.462/2011), tornando-se mais fácil seu manuseio pelo advogado e pelas empresas.

Mas atenção: a lei nova não irá se aplicar às empresas públicas e sociedades de economia mista, que seguem sendo regidas por diploma própria, a saber, a Lei 13.303/2016 (que também tem uma numeração muito sonora).

Por contar com um total de 190 artigos dispostos ao longo de 188 páginas de legislação, a nova norma é demasiadamente complexa para se trazer aqui uma análise individual e pormenorizada de cada alteração. Contudo, é a esperança do autor desse breve artigo de opinião que os poucos apontamentos aqui trazidos sejam suficientes para conscientizar o leito do quão bem-vindas são as mudanças trazidas pelo novo diploma legal, estimulando-o a o conhecer melhor.

De resto, como as notícias já são boas, só nos resta esperar a promulgação da norma sem vetos substanciais por parte do Poder Executivo, e que a ela seja dada uma numeração tão única quanto a sequência de três “seis” que coroava a norma anterior, a qual, embora pontualmente criticada neste artigo, certamente serviu bem o propósito para o qual foi editada.

Pablo Eduardo Pocay Ananias


[1] Art. 43 (…) § 3º É facultada à Comissão ou autoridade superior, em qualquer fase da licitação, a promoção de diligência destinada a esclarecer ou a complementar a instrução do processo, vedada a inclusão de documento ou informação que deveria constar originalmente da proposta.

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