A MEDIDA PROVISÓRIA 925/2020 E OS DIREITOS DO CONSUMIDOR
Por Pablo Eduardo Pocay Ananias, advogado.
Quando o assunto é o novo coronavírus, a única certeza é a de que não existem certezas. Estudiosos e analistas do mundo inteiro, especializados nas mais diversas áreas, apresentam opiniões divergentes sobre como lidar com os diversos problemas decorrentes da pandemia. Em algo, contudo, são unânimes: ao dizerem que “o mundo não será mais o mesmo após o coronavírus.”
Ousamos ir além: as consequências da pandemia não serão sentidas somente no futuro, como também já impactam diversos atos praticados no passado. Contratos celebrados poucos meses atrás não poderão ser executados em razão do surgimento de um problema que sequer se imaginava quando de sua assinatura.
Nosso ordenamento jurídico, em tese, conta com mecanismos para lidar com essas situações: os arts. 478, 479 e 480 do Código Civil. É fato, porém, que, devido às dimensões dessa crise, esses dispositivos mostraram-se insuficientes para resolução de alguns casos específicos.
Não é por menos que o Congresso Nacional tem debatido a criação de legislação que discipline especificamente as normas de direito privado durante a pandemia[1]. Alguns setores, contudo, por terem sido mais afetados que outros, não podem aguardar o trâmite do projeto de lei para só então tomar medidas.
É o caso das companhias aéreas, que são, indubitavelmente, um dos ramos mais afetados pela pandemia. Embora elas continuem operando, isso ocorre em escala muito menor e diversas viagens tiveram de ser postergadas ou canceladas.
Ocorre que se essas empresas fossem simplesmente forçadas a rescindir os contratos e devolver o dinheiro das viagens que ocorreriam durante a pandemia, correriam o risco de falir. Ao mesmo tempo em que perderiam toda sua receita, seus gastos – com a manutenção das aeronaves e o pagamento do pessoal – não diminuiriam.
Justamente em razão disso foi necessária a edição de normas extraordinárias, visando disciplinar especificamente esse setor. A Presidência da República agiu rápido, tendo editado a Medida Provisória 925/2020, que assim dispõe:
Art. 1º Esta Medida Provisória dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19.
(…)
Art. 3º O prazo para reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observada as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente.
§ 1º Os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para a utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado.
§ 2º O disposto neste artigo aplica-se aos contratos de transporte aéreo firmados até 31 de dezembro de 2020.
Art. 4º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.
O texto da Medida Provisória é bastante curto, mas promove mudanças significativas no direito daqueles que recentemente adquiriram passagens aéreas, de modo que o que esse artigo de opinião objetiva é: (i) demonstrar o que de fato mudou em razão da nova norma e (ii) analisar se a Medida Provisória 925/2020 está ou não em consonância com a Constituição da República e o restante da legislação brasileira.
Começando pelo primeiro tópico, vê-se que o texto da norma não é de difícil leitura, inobstante seu impacto nas relações privadas. O consumidor que havia comprado passagem em voo cancelado em virtude da covid-19 terá duas opções, a saber:
- requerer o reembolso, que será pago no prazo de 12 (doze) meses. Nessa hipótese, como serão “mantidas as regras do serviço contratado”, a empresa poderá cobrar eventuais taxas e multas pela desistência, como previsto em contrato.
- aceitar crédito para utilização em voo futuro – quer seja para o mesmo destino ou para outro –, hipótese em que o consumidor ficará isento das penalidades contratuais. O crédito deverá ser usado em 12 meses.
Claramente se percebe que a intenção foi evitar o colapso das companhias aéreas, vez que lhes deu fôlego: em caso de reembolso, contarão com prazo de até um ano para devolver o valor pago pela passagem.
Certamente é uma medida que prejudica o consumidor. Afinal, ele pagou por uma viagem que não foi realizada e ainda terá de aguardar por meses para receber seu dinheiro de volta. Nada obstante, a determinação parece acertada na medida em que constitui uma forma de dividir os prejuízos de forma equânime: o consumidor recebe seu dinheiro de volta, porém a prazo, para evitar a falência da companhia.
Como já foi abordado em outro artigo do colega Júnior Miranda, a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça – fixada nos casos em que se pediam reequilíbrio de contratos de leasing com parcelas vinculadas ao dólar, cuja cotação sofreu variação de 60% em menos de duas semanas, em 1999 — é no sentido de que situações anormais demandam uma divisão equânime do prejuízo, tal como no caso.
Caso a norma parasse por aí – devolução do dinheiro no prazo de 12 meses –, estaríamos diante de uma situação razoável. Tanto a companhia aérea quanto o passageiro suportariam, cada um ao seu modo, as consequências de fato ao qual nenhum deles deu causa.
O problema é que a norma, em sua atual redação, permite que, caso o consumidor requeira reembolso, sejam cobradas as taxas estipuladas em contrato. Em alguns casos, tais taxas variam de 10% a 20% do valor da passagem. A companhia aérea, além de contar com prazo prolongado para a devolução do valor, poderá reter parte considerável dele.
A única outra opção do consumidor é converter o valor pago em crédito para uma viagem futura, dentro de um ano. Trata-se de uma escolha que também não é ideal: não só replanejar a viagem não é tarefa fácil, como pode não caber no orçamento do passageiro.
Um bom exemplo para ilustrar a questão é o caso da família de classe média que faria uma viagem internacional em julho. Reutilizar o crédito significa um enorme esforço logístico, pois será preciso conciliar as férias dos pais com um cada vez mais improvável recesso escolar, além de ser necessário levar em conta situações como a estação do ano no local de destino.
No mais, absolutamente nada garante que os demais custos relacionados a viagem – hotéis, atrações e passeios – serão os mesmos na época da nova viagem que eram quando o consumidor primeiro planejou seu orçamento, antes da pandemia. Isso tudo agravado pelo fato de o crédito dever ser utilizado dentro de um ano, período bastante curto, se consideradas as questões envolvidas.
Com efeito, não é exagero dizer que a Medida Provisória colocou o consumidor entre a cruz e a espada: ele será forçado a escolher entre duas opções que podem lhe ser ruins em igual medida. Por outro lado, percebe-se que a legislação protegeu bem as companhias aéreas.
Toda essa situação levou diversos consumidores a questionarem a Medida Provisória em juízo, por vezes apontando sua inconstitucionalidade. Em um desses casos, o magistrado responsável pelo Juizado Especial Cível da Comarca de Jundiaí – Estado de São Paulo proferiu uma interessante decisão, a qual se passa parcialmente reproduzir:
A impossibilidade de realização da viagem pelo consumidor, na data escolhida, não poderá obriga-lo a realiza-la em data diversa, se esta não é sua intenção, por circunstância a que não deu causa e sob pena de sofrer prejuízos econômicos. Observa-se que tal entendimento encontra amparo nos arts. 5º, XXXII e 170, V, da Constituição Federal e no artigo 6º, VI, CDC, o qual prevê, como direito básico do consumidor, a efetiva prevenção e reparação de danos materiais. (…) De qualquer modo, mostrar-se-ia incabível punir o consumidor por situação que não lhe pode ser imputável, com as mesmas penas que sofreria na hipótese de desistência pura, simples e imotivada, em situação de normalidade.
O argumento do magistrado, que bem destaca ser estranho que, sob o pretexto de salvar as companhias aéreas, a legislação tenha transferido a maior parte – senão todo – do ônus da pandemia para o consumidor, parte da premissa de que a norma seria inconstitucional por afronta ao art. 5º, XXXII, da Constituição da República.
Tal norma dispõe que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. A nós, por outro lado, parece ser um pouco demais falar na plena inconstitucionalidade da Medida Provisória com base nesse único dispositivo constitucional. A Constituição diz que a proteção ao Consumidor ocorrerá “na forma da lei”, ou seja, há plena margem para que o legislador decida como e sob quais condições ocorrerá a defesa do consumidor.
O nosso entendimento é de que pode, sim, haver inconstitucionalidade nessa norma, a depender da forma como for aplicada.
Explica-se: o entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que é possível que uma norma não seja inconstitucional, mas alguma das interpretações possíveis dela o seja. Nessa hipótese, costumam fixar o que se conhece por “interpretação conforme a Constituição”: o STF fala qual a interpretação constitucional da norma, e afasta todas as outras.
Parece-nos que, embora a Medida Provisória 925 não seja plenamente inconstitucional, sempre que sua aplicação resultar em uma excessiva vantagem para a companhia aérea em detrimento do consumidor – como em casos em que se cobrem taxas de reembolso de 20% -, estar-se-á diante de uma inconstitucionalidade, pois se trata de uma norma que não protege devidamente o consumidor.
Quando, porém, da aplicação da norma resultarem tarifas módicas, não haverá inconstitucionalidade a ser arguida. Inclusive, o art. 740, § 3º, do Código Civil, que antes do advento da Medida Provisória era o que regulamentava tais contratos, já previa uma tarifa de cinco por cento em caso de cancelamento.
Esse valor – e outros que gravitem próximo disso – parecem ser multas aceitáveis. Afinal, servem para recompor os custos que a companhia aérea teve com o agendamento e cancelamento da passagem.
Valores muito acima disso, contudo, implicariam enriquecimento ilícito da companhia. Não há custo administrativo que ultrapasse as centenas de reais, o que significa dizer que a empresa lucrará com a desistência, não só recomporá o seu prejuízo. Até porque, no futuro, irá revender a passagem desmarcada pelo consumidor, de modo que lucrará o valor pelo qual tal passagem for revendida somado ao total da multa.
Vê-se que nessa hipótese, na qual a empresa aufere lucro com base na Medida Provisória, não só há uma completa desvirtuação do motivo pela qual a norma foi editada – combater a pandemia promovendo um reequilíbrio nos prejuízos sofridos pelas partes contratantes –, como também há efetivo desrespeito à norma constitucional de que o Estado deve promover a proteção do consumidor.
Na hipótese de ser adotada essa interpretação, a norma deixará
de promover a proteção do consumidor para simplesmente legitimar a exploração
dele. Trata-se de interpretação eminentemente inconstitucional que deverá ser
rechaçada pelos juízes no caso concreto, sem, contudo, declarar a norma em si
inconstitucional.
[1] Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-mai-14/camara-aprova-texto-pl-regras-emergenciais-crise