Oriundas do direito de família
Em 25.11.2015, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido liminar, subscrita por seu presidente, Rodrigo da Cunha Pereira e pela renomada doutrinadora e vice-presidente, Maria Berenice Dias, a fim de suspender os efeitos da incidência do Imposto de Renda sobre obrigações alimentares oriundas do direito de família.
A pretensão objetiva a declaração de inconstitucionalidade do artigo 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88[1], combinado com os artigos 5°[2] e 54[3] do Decreto nº 3.000/99 que preveem a tributação sobre essas verbas alimentares.
Um dos argumentos do Instituto sustenta que o fato gerador do imposto de renda é o “aumento de renda do contribuinte” e, tratando-se a pensão alimentícia de valor destinado à subsistência, tributá-lo seria injusto sob o vértice da dignidade da pessoa humana além de inconstitucional, já que, desde a Emenda Constitucional n° 64/2010, a alimentação foi inserida no rol dos direitos sociais. Não só, essa renda já sofre tributação quando do ingresso no acervo do devedor dos alimentos, de modo que não haveria razão para tributá-la novamente.
Se adentrarmos à análise da regra matriz de incidência tributária, o critério material para incidência do Imposto sobre a Renda e que vem a estabelecer a relação jurídica, é configurado pelo auferimento de renda e proventos de qualquer natureza, afirmando a necessidade de aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica dessa renda, para a consequente ocorrência do fato gerador.
A grande controvérsia acerca dessa incidência sobre as verbas alimentares se dá, sob o nosso ponto de vista, na ampliação, pelo legislador ordinário, do alcance desses dois vocábulos, quando desconsidera o objetivo e natureza das verbas alimentares classificando-as como “renda” ou “proventos” quando não o são, por livre interpretação e de maneira arbitrária, o que ultrapassa a sua competência.
Ambas as nomenclaturas, previstas tanto na Constituição Federal[4] quanto no Código Tributário Nacional[5], foram delimitadas pelo próprio CTN que dirimiu eventual dúvida quanto à definição do fato gerador do IR, quando tratou dessa interpretação trazida em seu artigo 43 sujeitando-o à condição da efetiva ocorrência de acréscimo patrimonial, seja como produto de capital, do trabalho ou da combinação de ambos (renda) ou da atividade que já cessou, mas continua produzindo frutos (proventos).
Na ausência de definição específica acerca da abrangência dessa norma descritiva, se é compreensível identificar que verba alimentar não confere o referido acréscimo, é contrassenso incluí-la no conceito de renda ou proventos de qualquer natureza. Portanto, há propensão, sob essa perspectiva, de haver a convergência, pela Suprema Corte, com esse argumento.
No que diz respeito à menção do fenômeno bis in idem, parece-nos razoável a premissa do Ministro Dias Toffoli quando enxerga, na exigência do imposto de renda sobre a verba alimentar, uma nova incidência sobre a mesma realidade jurídico-tributária.
O especialista Rolf Madaleno vai no mesmo sentido e ainda destaca outra perspectiva, também abordada na ADI, quando esclarece o contexto da tributação aqui discutida com a distinção sofrida no seio das entidades familiares. Isso porque, apenas pelo advento do divórcio, aquela quantia que antes era destinada a suprir as necessidades mútuas de quem compunha a entidade familiar, agora passa a ser base de cálculo do imposto de renda, única e exclusivamente em razão da dissolução do vínculo conjugal[6]. Significa dizer que, se os valores utilizados com as compras rotineiras de mercado de uma família não estão sujeitos ao IR na vigência do casamento, por qual motivo o divórcio e a determinação judicial do pagamento de quantia para idêntica finalidade, seriam justificativas para a incidência do imposto quando este valor ingressa na esfera patrimonial do alimentado?
Dentro desse prisma, importante meditar quanto à efetividade da aplicação do princípio da capacidade contributiva, que visa a identificação da capacidade econômica do contribuinte, respeitados seus direitos individuais, onde busca não só efetividade na incidência com a redistribuição de riquezas pelo ente federal, mas também poupar o contribuinte de ter seus meios de subsistência e liberdades fundamentais comprometidas com o excesso da exação.
Sob a mesma lógica, a propósito, teceram argumentos os subscritores da ADI, quando mencionaram, no âmbito da inconstitucionalidade, a “injustiça” ou “perversidade” da situação em tela. Isso pois, o artigo 78 do Decreto n° 3.000/99, antigo Regulamento do Imposto sobre a Renda, substituído pelo Decreto nº 9.580/18 – RIR/2018, contém dispositivo[7] que faculta ao pagador a dedução integral no Imposto de Renda dos valores pagos como pensão alimentícia – privilegiando assim o mais forte – e cobrando o Imposto de Renda do alimentando. Logo, o alimentado é quem se submete à tributação, não o responsável pelo pagamento dos alimentos, ainda que aquele seja, geralmente, criança ou adolescente dependente de alguém para suprir suas necessidades fundamentais e a quem o Estado deveria tratar com absoluta prioridade.
Nos parece temerário, contudo, o argumento categórico de indisponibilidade financeira do alimentado, para justificar a defesa de inconstitucionalidade dos dispositivos, como uma espécie de presunção de condição sempre favorável do alimentante. Assim, a discussão fixada demonstra a necessidade de extrema ponderação pelo STF quando da definição e apreciação de todos os direitos e interesses envolvidos.
Tais reflexões levaram o IDBFAM à seguinte conclusão:
Estamos diante de um paradoxo: o alimentário já é desprovido de recursos próprios para fazer frente às suas necessidades básicas, sendo então atendido pelos ingressos financeiros gerados pelo núcleo familiar por meio, em tese, do trabalho exercido pelo ex-cônjuge/companheiro encarregado de ser o provedor da entidade familiar.
Com a quebra da convivência mútua e passando o alimentário a receber pensão alimentícia, para fazer frente às suas necessidades básicas de sobrevivência – perceba-se que antes já existentes – agora, por força da norma legal anunciada como inconstitucional, passa a ser tributada, como se as necessidades básicas de antes não mais subsistissem, o que é uma contradição.
Importante citar, por fim, outro fundamento utilizado na demanda judicial pelo Instituto de Direito de Família, quando cita que a obrigação alimentar tratada na ADI n° 5.422 tem como requisitos: a) existência de vínculo de parentesco ou de reciprocidade; b) necessidade da pessoa que reclama os alimentos, admitindo-se a presunção em caso de crianças e adolescentes; c) possibilidade da pessoa que se encontra obrigada a pagá-los; e d) proporcionalidade na fixação do valor a ser pago a título de alimentos.
Essas foram as razões acolhidas pelo Ministro Dias Toffoli, Relator da ADI em questão, na minuta do voto disponibilizada em 12.03.2021 em que teve início o julgamento do processo de modo a dar ao artigo 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88, artigos 4º e 46 do Anexo do Decreto-Lei nº 9.580/18, artigo 3º, caput, § 1º e artigo 4º do Decreto- Lei nº 1.301/73, interpretação em conformidade com a Constituição Federal para afastar a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões em cumprimento de acordo judicial.
[1] Art. 3º O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei (Vide Lei nº 8.023, de 12.4.90).
- 1º Constitui rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados.
[2] Art. 5º. No caso de rendimentos percebidos em dinheiro a título de alimentos ou pensões em cumprimento de acordo homologado judicialmente ou decisão judicial, inclusive alimentos provisionais ou provisórios, verificando-se a incapacidade civil do alimentado, a tributação far-se-á em seu nome pelo tutor, curador ou responsável por sua guarda (Decreto-Lei nº 1.301, de 1973, arts. 3º, § 1º, e 4º). Parágrafo único. Opcionalmente, o responsável pela manutenção do alimentado poderá considerá-lo seu dependente, incluindo os rendimentos deste em sua declaração (Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995, art. 35, incisos III a V, e VII).
[3] Art. 54. São tributáveis os valores percebidos, em dinheiro, a título de alimentos ou pensões, em cumprimento de decisão judicial ou acordo homologado judicialmente, inclusive a prestação de alimentos provisionais (Lei nº 7.713, de 1988, art. 3º, § 1º).
[4] Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
III – renda e proventos de qualquer natureza.
[5] Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
[6] Referido na petição inicial da ADIN, “A intributabilidade da pensão alimentícia”. Revista IBDFAM- Famílias e Sucessões. Belo Horizonte: IBDFAM, v. 6. 2014.
[7] Art. 709. Na determinação da base de cálculo sujeita à incidência mensal do imposto sobre a renda, poderá ser deduzida a importância paga a título de pensão alimentícia em decorrência das normas do Direito de Família, quando em cumprimento de decisão judicial, inclusive a prestação de alimentos provisionais, de acordo homologado judicialmente ou de escritura pública a que se refere o art. 733 da Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil ( Lei nº 9.250, de 1995, art. 4º, caput, inciso II ).
- 1º A partir do mês em que se iniciar a dedução, é vedada a dedutibilidade do valor correspondente a dependente relativa ao mesmo beneficiário.
- 2º O valor da pensão alimentícia não utilizado como dedução no mês de seu pagamento poderá ser deduzido no mês subsequente.
- 3º Caberá ao prestador da pensão fornecer o comprovante do pagamento à fonte pagadora quando esta não for responsável pelo desconto.
Autoria de: Leila Erdmann Sônego e Janini Denipoti